GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA
Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidade de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade de Sevilla. Professor Universitário em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira 27. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Advogado.
A Medida Provisória 927, de 22 de março de 2020, dispõe sobre as medidas trabalhistas que podem ser adotadas pelos empregadores para preservação do emprego e da renda e para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo 6/2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), decretada pelo Ministro de Estado da Saúde, em 03 de fevereiro de 2020, nos termos do disposto na Lei 13.979/2020.
O art. 2º da Medida Provisória 927/2020 estabelece que durante o mencionado estado de calamidade pública, o empregado e o empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição.
Essa preponderância do acordo individual de trabalho, firmado entre empregado e empregador, em face das leis e das normas coletivas, entretanto, é questionável, uma vez que, a rigor, a negociação individual não pode afastar as previsões de ordem pública estabelecidas em leis imperativas (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988), bem como em convenções coletivas e acordos coletivos (art. 7º, inciso XXVI, da Constituição da República), e mesmo em sentenças normativas (art. 114, §§ 2º e 3º, da Constituição Federal de 1988)[1].
A Medida Provisória 927/2020, ao instituir a preferência do acordo individual entre e empregado e empregador em face das leis e da negociação coletiva de trabalho, está em desacordo com o próprio caput do art. 444 da CLT, no sentido de que as relações contratuais de trabalho podem ser objeto de livre estipulação das partes interessadas em tudo quanto não contravenha às disposições de proteção ao trabalho, aos contratos coletivos (ou seja, acordos coletivos e convenções coletivas) que lhes sejam aplicáveis e às decisões das autoridades competentes[2].
A referida previsão da Medida Provisória 927/2020 também não se harmoniza com o art. 4º da Convenção 98 da Organização Internacional do Trabalho, de 1949, promulgada pelo Decreto 33.196/1953 (atualmente Decreto 10.088/2019), no sentido de que devem ser tomadas, se necessário for, medidas apropriadas às condições nacionais, para fomentar e promover o pleno desenvolvimento e utilização de meios de negociação voluntária entre empregadores ou organizações de empregadores e organizações de trabalhadores com o objetivo de regular, por meio de convenções coletivas, os termos e condições de emprego.
De todo modo, ao se exigir que sejam observados os limites constitucionais, é imperioso ressaltar que o princípio da norma mais favorável, o qual decorre do princípio da proteção, inerente ao Direito do Trabalho[3], tem como fundamento o art. 7º, caput, da Constituição da República[4].
Apesar do exposto, o Supremo Tribunal Federal negou referendo ao indeferimento da medida cautelar tão somente em relação aos arts. 29 e 31 da Medida Provisória 927/2020, tendo suspendido a eficácia apenas desses dispositivos (STF, Pleno, MC-ADI 6.342/DF, MC-ADI 6.344/DF, MC-ADI 6.346/DF, MC-ADI 6.348/DF, MC-ADI 6.349/DF, MC-ADI 6.352/DF, MC-ADI 6.354/DF, Rel. p/ ac. Min. Alexandre de Moraes, j. 29.04.2020). Sendo assim, quanto aos demais dispositivos da Medida Provisória 927/2020 que foram questionados nas ações diretas de inconstitucionalidade, o Supremo Tribunal Federal referendou o indeferimento da medida liminar pleiteada, com o que manteve a sua eficácia.
Especificamente a respeito do art. 2º da Medida Provisória 927/2020, a decisão monocrática proferida em liminar de medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade, que nesse ponto foi referendada pelo Pleno do Supremo Tribunal Federal, tem o seguinte teor: “O preceito sobrepõe o acordo individual a possíveis instrumentos normativos e remete aos limites revelados na Constituição Federal. A liberdade do prestador dos serviços, especialmente em época de crise, quando a fonte do próprio sustento sofre risco, há de ser preservada, desde que não implique, como consta na cláusula final do artigo, a colocação em segundo plano de garantia constitucional. É certo que o inciso XXVI do artigo 7º da Constituição Federal, pedagogicamente, versa o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho, quando então se tem, relativamente a convenções, ajuste formalizado por sindicato profissional e econômico e, no tocante a acordo coletivo, participação de sindicato profissional e empresa. O preceito não coloca em segundo plano a vontade do trabalhador. Sugere, isso sim, que o instrumento coletivo há de respeitar, há de ser formalizado em sentido harmônico com os respectivos interesses. Descabe, no que ficou prevista a preponderância do acordo individual escrito, voltado à preservação do liame empregatício – repita-se – ante instrumentos normativos legais e negociais, assentar, no campo da generalidade, a pecha de inconstitucionalidade” (STF, MC-ADI 6.342/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 26.03.2020, DJe 30.03.2020).
Na realidade, a assimetria dos sujeitos da relação de emprego inviabiliza que a vontade do trabalhador seja sempre manifestada de forma hígida, livre e válida em face do empregador, titular do poder de direção, tornando o acordo individual, mesmo escrito, incompatível com a maior vulnerabilidade do empregado, que se acentua em situações de crise, e a subordinação inerente ao contrato de trabalho.
Caberia ao Congresso Nacional, quando da deliberação sobre a Medida Provisória 927/2020, ajustar a previsão em destaque, tornando-a compatível com a ordem constitucional.
[1] Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 524: “Na relação entre lei e contrato individual de trabalho este só pode afastar a lei quando mais favorável ao trabalhador e desde que da lei não resulte a impossibilidade de afastamento, ou seja, desde que as leis não sejam imperativas absolutas; na relação entre instrumentos coletivos e contrato individual de trabalho as convenções coletivas são afastadas pelo contrato individual de trabalho, somente quando o contrato dispuser de modo mais favorável ao trabalhador e desde que as cláusulas da convenção coletiva não tenham natureza imperativa”.
[2] Cf. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 521: “Entre um convênio coletivo, expressão aqui tomada em sentido genérico para abranger todos os tipos de instrumentos gerados pela negociação coletiva, e um contrato individual de trabalho, prevalece o que for mais benéfico para o trabalhador, não podendo este reduzir vantagens estabelecidas por aquele”.
[3] Cf. MAGANO, Octavio Bueno. Manual de direito do trabalho: parte geral. 4. ed. São Paulo: LTr, 1991. v. 1. p. 59: “o Direito do Trabalho pode ser definido como o conjunto de princípios, normas e instituições, aplicáveis à relação de trabalho e situações equiparáveis, tendo em vista a melhoria da condição social do trabalhador, através de medidas protetoras e da modificação das estruturas sociais”.
[4] Cf. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho. 17. ed. São Paulo: LTr, 2018. p. 233: “a partir de 1988, o princípio da norma mais favorável adquiriu até mesmo respaldo constitucional, por meio do caput do art. 7º da Constituição da República”.
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