GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA
Livre-Docente pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Especialista em Direito pela Universidad de Sevilla. Pós-Doutorado em Direito na Universidad de Sevilla. Membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, Titular da Cadeira nº 27. Membro Pesquisador do IBDSCJ. Professor Universitário em Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito. Advogado. Foi Juiz do Trabalho das 2ª, 8ª e 24ª Regiões, ex-Procurador do Trabalho do Ministério Público da União e ex-Auditor-Fiscal do Trabalho.
A Portaria do Ministério do Trabalho nº 1.129, de 13 de outubro de 2017, publicada no Diário Oficial da União de 16.10.2017, dispõe sobre os conceitos de trabalho forçado, jornada exaustiva e condições análogas à de escravo para fins de concessão de seguro-desemprego ao trabalhador que vier a ser resgatado em fiscalização do Ministério do Trabalho, nos termos do art. 2º-C da Lei 7.998/1990, bem como altera dispositivos da Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4, de 11 de maio de 2016, a qual dispõe sobre as regras relativas ao Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo.
Um dos aspectos de maior destaque na referida Portaria 1.129/2017 é a conceituação restritiva de “trabalho forçado”, “jornada exaustiva”, “condição degradante” e “condição análoga à de escravo” (art. 1º).
Como desdobramento de nítida relevância, de acordo com o art. 2º da Portaria 1.129/2017, os conceitos estabelecidos no seu art 1º deverão ser observados em quaisquer fiscalizações procedidas pelo Ministério do Trabalho, inclusive para fins de inclusão de nome de empregadores no Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo, estabelecido pela Portaria Interministerial MTPS/MMIRDH nº 4/2016.
A Portaria 1.129/2017 conceitua, de forma restritiva, “trabalho forçado” como “aquele exercido sem o consentimento por parte do trabalhador e que lhe retire a possibilidade de expressar sua vontade” (art. 1º, inciso I).
Não obstante, na atualidade, considera-se trabalho forçado não só aquele em que o empregado não tenha se oferecido espontaneamente, mas também quando o trabalhador é enganado com falsas promessas de condições de trabalho, havendo coação física ou moral.
Na mesma linha de restrição, a Portaria 1.129/2017 a conceitua a “jornada exaustiva” (art. 1º, inciso II) como “a submissão do trabalhador, contra a sua vontade e com privação do direito de ir e vir, a trabalho fora dos ditames legais aplicáveis a sua categoria” (destaquei).
A hipótese de jornada exaustiva, entretanto, segundo a previsão legal (art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei 10.803/2003), não exige essa privação da liberdade de locomoção propriamente.
Conforme a Portaria 1.129/2017, “condição degradante” (art. 1º, inciso III) é caracterizada por “atos comissivos de violação dos direitos fundamentais da pessoa do trabalhador, consubstanciados no cerceamento da liberdade de ir e vir, seja por meios morais ou físicos, e que impliquem na privação da sua dignidade” (destaquei).
Como se pode notar, restringe-se o conceito de trabalho em condição degradante, exigindo, sempre, o cerceamento da liberdade de locomoção do trabalhador.
O argumento que prevaleceu, ao que tudo indica, pode ser no sentido de se buscar conferir maior segurança jurídica a respeito do tema.
Entretanto, o conceito contemporâneo de trabalho em condições análogas à de escravo, inclusive em conformidade com a atual previsão do art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei 10.803/2003, por ser mais amplo, não faz essa exigência restritiva.
No sentido exposto, consoante a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:
“Penal. Redução a condição análoga a de escravo. Escravidão moderna. Desnecessidade de coação direta contra a liberdade de ir e vir. Denúncia recebida. Para configuração do crime do art. 149 do Código Penal, não é necessário que se prove a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção, bastando a submissão da vítima ‘a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva’ ou ‘a condições degradantes de trabalho’, condutas alternativas previstas no tipo penal. A ‘escravidão moderna’ é mais sutil do que a do século XIX e o cerceamento da liberdade pode decorrer de diversos constrangimentos econômicos e não necessariamente físicos. Priva-se alguém de sua liberdade e de sua dignidade tratando-o como coisa e não como pessoa humana, o que pode ser feito não só mediante coação, mas também pela violação intensa e persistente de seus direitos básicos, inclusive do direito ao trabalho digno. A violação do direito ao trabalho digno impacta a capacidade da vítima de realizar escolhas segundo a sua livre determinação. Isso também significa ‘reduzir alguém a condição análoga à de escravo’. Não é qualquer violação dos direitos trabalhistas que configura trabalho escravo. Se a violação aos direitos do trabalho é intensa e persistente, se atinge níveis gritantes e se os trabalhadores são submetidos a trabalhos forçados, jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho, é possível, em tese, o enquadramento no crime do art. 149 do Código Penal, pois os trabalhadores estão recebendo o tratamento análogo ao de escravos, sendo privados de sua liberdade e de sua dignidade. Denúncia recebida pela presença dos requisitos legais” (STF, Pleno, Inq 3.412/AL, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para acordão Min. Rosa Weber, m.v., DJe 12.11.2012, destaquei).
“Recurso extraordinário. Constitucional. Penal. Processual Penal. Competência. Redução a condição análoga à de escravo. Conduta tipificada no art. 149 do Código Penal. Crime contra a organização do trabalho. Competência da Justiça Federal. Artigo 109, inciso VI, da Constituição Federal. Conhecimento e provimento do recurso. 1. O bem jurídico objeto de tutela pelo art. 149 do Código Penal vai além da liberdade individual, já que a prática da conduta em questão acaba por vilipendiar outros bens jurídicos protegidos constitucionalmente como a dignidade da pessoa humana, os direitos trabalhistas e previdenciários, indistintamente considerados. 2. A referida conduta acaba por frustrar os direitos assegurados pela lei trabalhista, atingindo, sobremodo, a organização do trabalho, que visa exatamente a consubstanciar o sistema social trazido pela Constituição Federal em seus arts. 7º e 8º, em conjunto com os postulados do art. 5º, cujo escopo, evidentemente, é proteger o trabalhador em todos os sentidos, evitando a usurpação de sua força de trabalho de forma vil. 3. É dever do Estado (lato sensu) proteger a atividade laboral do trabalhador por meio de sua organização social e trabalhista, bem como zelar pelo respeito à dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inciso III). 4. A conjugação harmoniosa dessas circunstâncias se mostra hábil para atrair para a competência da Justiça Federal (CF, art. 109, inciso VI) o processamento e o julgamento do feito. 5. Recurso extraordinário do qual se conhece e ao qual se dá provimento” (STF, Pleno, RE 459.510/MT, Rel. p/ acórdão: Min. Dias Toffoli, DJe 12.04.2016, destaquei).
Desse modo, na atualidade, entende-se que o trabalho degradante é caracterizado por condições precárias de labor, sem a observância das normas mínimas de segurança, higiene e saúde do trabalho, em afronta à dignidade humana.
Ainda segundo a mencionada Portaria 1.129/2017, “condição análoga à de escravo” (art. 1º, inciso IV) é considerada:
“a) a submissão do trabalhador a trabalho exigido sob ameaça de punição, com uso de coação, realizado de maneira involuntária;
b) o cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, caracterizando isolamento geográfico;
c) a manutenção de segurança armada com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto;
d) a retenção de documentação pessoal do trabalhador, com o fim de reter o trabalhador no local de trabalho”.
Não obstante, conforme o art. 149 do Código Penal, com redação dada pela Lei 10.803/2003, que tipifica o crime de “redução a condição análoga à de escravo”:
“Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhados forçados ou a jornada excessiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa, além da pena correspondente à violência.
§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:
I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho”.
Logo, de acordo com a previsão legal, a “redução a condição análoga à de escravo”, ou seja, o trabalho em condições análogas à de escravo, é gênero que engloba as seguintes espécies ou modalidades:
a) trabalho forçado;
b) jornada exaustiva;
c) condição degradante de trabalho;
d) restrição da locomoção em razão de dívida;
e) cerceamento do uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho;
f) manutenção de vigilância ostensiva no local de trabalho;
g) apoderar-se de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
A redução de trabalhador a condição análoga à de escravo configura grave violação à dignidade da pessoa humana, prevista como fundamento do Estado Democrático de Direito (art. 1º, inciso III, da Constituição da República), o que resulta em manifesta contrariedade ao chamado trabalho decente, previsto e exigido também na esfera internacional[1].
Portanto, em respeito à hierarquia das normas no sistema jurídico e mesmo ao princípio da legalidade (art. 5º, inciso II, da Constituição Federal de 1988), não caberia a ato de natureza administrativa, como Portaria ministerial, versar sobre matéria reservada à lei (art. 22, inciso I, da Constituição da República), nem restringir o alcance e o sentido de determinações de ordem legal.
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[1] Cf. GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. Curso de direito do trabalho. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 200-202.
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